Hoje fazem exatos 13 meses que perdí minha irmã caçula para um cancer, uma leucemia. Dia 13 de janeiro de 2010... Doença desgraçada, só pode ser cármica, porque maltrata o doente e todos os que o querem bem. Foi o desfecho de uma batalha de dois anos, com muita dor, sofrimento, medos, angústias, esperanças. Esperança e Fé. Engraçado como as duas se manifestam de modos estranhos em situações de extremos... Enfim, a doença venceu e restou a dolorida saudade. Quem é irmão mais velho sabe o que é perder o irmão caçulinha. Não interessa sua idade, o caçulinha é sempre o bebê, não é aquele com quem voce disputa a atenção dos pais, a partilha dos brinquedos e do espaço, o lugar ao sol. O caçulinha é aquele que precisa de voce, irmão mais velho, e que voce cuida e protege. E quando o caçulinha é um grande amigo seu, então o vazio é existencial. Ela morreu dentro do hospital, depois de nove dias de internação e uma semana de quimioterapia. Saíu lúcida do quarto para a UTI, pra meia hora depois o médico vir dizer que ela "não aguentou"... Não aguentou o quê? O cancer, a quimio, o hospital, os procedimentos de entubamento, o medo, a dor, a espectativa de viver cada vez pior, a saudade do filho e da sua vida antes da doença, afinal, o que foi que ela não aguentou?? Até hoje o médico dela, que não estava lá na hora fatídica, não nos chamou para explicar o que aconteceu, se algo deu errado ou se seria assim mesmo. Estou bastante aborrecida com isso e chego a ter raiva da classe médica. Ora, se um processo é perdido, o cliente do advogado quer saber o porquê, e ele tem todo o direito a isso. Ao longo do processo judicial, todos os andamentos têm de ser explicados e comprovados, o cliente quer saber. E é assim que está certo. O que acontece com os médicos? Não se sentem obrigados a isso, sua obrigação termina com o fim da vida? São tão especiais, divinos, que não podemos nem perguntar o que está acontecendo? Muitas coisas me pareceram erradas no tratamento da minha irmã, desde a quantidade de quimioterapias aplicadas, o transplante de medula que nem foi cogitado, até o fato de ela ter sido mantida em um quarto com outras pessoas e suas acompanhantes, com doenças diversas, inclusive feridas abertas e infeccionadas, que a colocavam em risco, por conta da baixa de imunidade que a quimio traz. Justamente por ser leiga, eu creio que deveríamos ter sido esclarecidos pelo profissional competente. E isso não foi feito, até agora. Pior que isso: por não ter havido esclarecimento, não foi permitido à minha irmã escolher sua forma e seu tempo de morrer. Ela chegou ao hospital bem, forte, corada, feliz e esperançosa. Terminou a quimioterapia com a resistência muito acima da expectativa. E seu atestado de óbito diz que ela teve uma pneumonia e sepse, que é infecção generalizada. Como aconteceu isso? Amigos médicos dizem que foi melhor assim, que se ela sobrevivesse a essa recaída da doença ela viveria muito mal, com muito baixa qualidade de vida. Disseram que ela ter sobrevivido ao primeiro ataque da doença foi um milagre. Disseram que até os próprios médicos levam infecção ao paciente, que é difícil evitar a infecção dentro do hospital. Mas, e aí? O que significa isso tudo, quando tudo já aconteceu? Fico pensando que, se talvez seu médico lhe tivesse dito que a doença é 80% fatal (o que é real, hoje eu sei) e que a recaída não dá escapatória, será que ela teria querido ir para o hospital, enfrentar nova quimio? Ou teria preferido ficar com seu filho, em sua casa, com seus cachorros, suas coisinhas, nossa mãe trazendo suquinhos e suas irmãs trazendo os sobrinhos, para talvez morrer sem dor, apagando-se silenciosa e serenamente como uma vela linda que chega ao fim? Tenho raiva, porque acho que o médico sabia que ela "não aguentaria". Tenho raiva porque ele sempre foi evasivo e nunca explicou realmente as expectativas, as possibilidades. Tenho raiva porque, se a quimioterapia tira temporariamente a imunidade do paciente, que pode até morrer de um simples resfriado, porque é que ela não foi isolada em um quarto, sozinha, com todos os procedimentos necessários para assepsia de objetos e visitantes? Sabe a resposta que ouví quando questionei o isolamento? "Mas o convênio dela é de enfermaria! As pessoas compram enfermaria, achando que não vão precisar, e olha aí. Ela deveria ter comprado o apartamento..." Não sei, pode ser ignorância minha, mas se o tratamento pede isolamento, o que tem a haver convênio de enfermaria ou de apartamento? Não está claro que o isolamento é uma questão de vida ou de morte?... Então!...
Uma das últimas coisas que ela me disse é que ela não tinha medo da morte, mas tinha medo da dor. E o tratamento é absolutamente dolorido, a doença é terrivelmente dolorida. E muitas vezes eu penso que ela se foi porque não aguentou a idéia de sofrer de novo e mais. Especialmente porque ela parecia bem, recuperada. E eu me pergunto: até quando médicos vão ingerir-se em nossas decisões sobre nossa própria morte? Um advogado não faz um processo pra voce, se voce não quiser, não lhe der autorização, procuração e pagamento para isso. Quando se trata de saúde e de vida e morte, a lei protege de forma integral a dignidade e o respeito ao doente. Não estamos falando aqui de eutanásia. Estamos falando de dignidade e respeito à vida e à morte. De minimizar sofrimentos, especialmente os emocionais, os morais. De permitir à pessoa decidir sobre sí, e aproveitar o tempo que eventualmente lhe resta como bem lhe aprouver, talvez até mesmo despedindo-se de quem ama com tranquilidade, com possibilidade de dizer e ouvir as coisas que realmente são importantes, de perdoar e ser perdoado, de aconselhar seus filhos, de beijar seus pais, de ver seus pores de sol e cheirar quantos bolos no forno e tomar quantas xícaras de café puder. A Constituição Federal, o Estatuto Médico e seu Código de Ética e as Leis de Direito dos Pacientes obrigam, isso mesmo, obrigam ao absoluto esclarecimento ao paciente e seus familiares sobre a doença, os exames, o tratamento e suas consequências. Obrigam ainda a acatar a decisão do paciente, ou da família autorizada por ele, a não receber o tratamento ou não fazer os exames propostos. Obrigam mesmo a que sejam respeitadas e aceitas as posturas religiosas e morais do paciente, quando estas confrontarem o tratamento proposto. Isso tudo em nome da dignidade. Afinal, a vida a ser prolongada deve ter qualidade, e não apenas ser esticada. Por isso, o Código de Ética médico agora privilegia a qualidade de vida a ser preservada, diferente de como era anteriormente, quando o que tinha de ser preservado a todo custo era a vida, não interessava o que isso significaria, ou quantas dores e sofrimentos traria. Fico pensando nos beijos que não lhe dei, nas vezes em que poderia ter-lhe dito o quanto a amo, e nas tantas gargalhadas que teríamos dado, rindo da própria situação drástica e burlesca da iminência da morte. Penso nas coisas que ela não chegou a dizer ao seu único e amado filho, à minha mãe, à minha outra irmã, aos sobrinhos, ao homem que amava, porque ela achou que seria fácil e rápido, e que retornaria logo pra casa, pra nós, com mais tempo para resolver isso tudo. Sei que se ela soubesse que havia a possibilidade real de não sair viva da internação, talvez ela tivesse querido ficar em casa, sem dores, e com alguns dias a mais entre nós. Isso lhe foi tirado, e foi tirado de nós, por alguém que não se sentiu obrigado a nos colocar ao par da realidade. Essa morte serena, preparada, foi proibida por alguém que acha estar acima da capacidade alheia de decidir sobre seu destino. Não quero mal a esse médico, quero apenas que ele nos explique o que houve, que nos diga porque ela morreu de pneumonia e de sepse, que esclareça o motivo de ela ter permanecido naquele quarto cheio de gente e insalubre para ela, de ele não ter feito mais quimioterapias, de não ter feito o transplante de medula, e se a morte dela era iminente e em que medida, e o que seria dela após aquela internação, se sobrevivesse. Quero que ele me explique se ela precisava mesmo ter um convênio de apartamento, para poder estar viva agora. O filho adolescente dela, tão desejado e adorado por ela, merece saber. Minha mãe, que infartou e quase morreu, merece saber. Eu e minha outra irmã, que perdemos muito da nossa alegria, merecemos saber. Quem sabe ele se questione e não se permita mais estar acima de tudo e de todos. E aprenda que deve instruir, para respeitar a dignidade alheia e, quem sabe, aliviar-se por poder repartir sua responsabilidade de ser Deus.
Com o coração ainda sangrando, mas já capaz de tocar nesse assunto, despeço-me com saudosas e doloridas Saudações Acadêmicas. Te amo pra sempre, irmã!
infelismente, como em toda profissão existe os bons e os que acham que são bons e nos colocam uma venda nos olhos e quando percebemos, pode ser tarde demais,como é o seu caso. hoje entrei no seu blog e, chorei com vc, que mais falar neste momento? nada minha querida, só ficar proxima, estou aqui... bjs sanmacarielli.
ResponderExcluir